O nazismo de Elon Musk é apenas o proselitismo americano

Paulo Rebêlo
Depois de Amanhã | janeiro 2025


A saudação nazista de Elon Musk não é um crime contra a humanidade e nem sequer uma violação dos Direitos Humanos – dois argumentos que estão permeando o noticiário dos jornais latinos e europeus para descrever o ato.

Além de bastante previsível, diante do histórico recente de manifestações similares de Elon Musk em público, o ato de Hélio Mosca é um gesto geopolítico calculado e muito bem premeditado para a posse de Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos. Representa a conclusão de uma virada de chave para mostrar que o MAGA (Make America Great Again) deixa de ser um slogan trumpista para se transformar em fundamento proselitista. Neste caso, para a América voltar a ser o que a América sempre tentou ser, embora nunca tenha conseguido realmente.

Aqui abaixo da linha do Equador, nós temos uma dificuldade imensa em compreender o impacto sociocultural da famosa Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos. Os europeus entendem, mas não aceitam. Os asiáticos aceitam, mas não respeitam. Na América Latina, a gente simplesmente não entende mesmo.

Fazendo jus ao nosso sangue quente que fervilha drama por onde passa, temos que apontar o dedo aos malditos ianques imperialistas e acusá-los de violadores de Direitos Humanos. É bonito, é justo e rende um monte de curtidas no post, mas só tem um pequeno problema: não existe Direitos Humanos na América. O que existe são direitos americanos.

Do mesmo modo, não existe crimes contra a humanidade se a humanidade não for americana. É uma sutil diferença equiparável à sutileza de uma patada de elefante, mas nem assim as nossas hemácias borbulhantes nos permitem observar e avaliar antes de gritar. Elon Musk também sabe disso.

De um lado, temos determinadas garantias da Primeira Emenda que não fazem o menor sentido diante do nosso histórico sangrento – e por vezes ainda presente – de ditaduras e repressão. E de outro lado, boa parte dessas manifestações desabam sobre as nossas costas como uma grande violência. Como é o caso, agora, da alegação generalizada de que Elon Musk violou os Direitos Humanos ao dar cabo ao ato nazista durante a posse.

A Primeira Emenda é um fundamento muito peculiar (e particular) dos Estados Unidos, cravado em pedra pelos “founding fathers“, os pais da fundação da América. Ela garante o absolutismo da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa, da  liberdade religiosa e da liberdade de agremiação. É uma garantia americana, para americanos, dentro de território americano. O resto do mundo que corra atrás de suas próprias garantias, como bem ensinava o finado Henry Kissinger, ícone máximo da Realpolitik e que morreu (aos 100 anos de idade!) deixando no limbo uma coleção de mandados de prisão expedidos e nunca cumpridos por metade do planeta.

Há décadas que Kissinger não podia sair dos EUA. Perdeu as contas de quais territórios ele podia colocar os pés e não ser preso imediatamente ao pousar. O Brasil, claro, nunca esteve nessa lista. Nossa tradição lacaia, aliás, vem de antes, muito antes de Kissinger.

Apesar dos usos enviesados e discutíveis da Primeira Emenda, é um tanto bizarro que tenha sido justamente esse fundamento que garantiu a segurança concreta e constitucional aos milhões de judeus que emigraram para os Estados Unidos. Fugindo de quem? Pois é, dos nazistas. E ainda tem gente que não acredita que o mundo está de cabeça para baixo.

Também é a Primeira Emenda que garante outros milhões de refugiados políticos e exilados de guerras, inclusive oriundos da “atual” Guerra da Ucrânia. Ao mesmo tempo, um sem número de criminosos de guerras presentes e passadas usufruem de confortável exílio na América, graças ao mesmo dispositivo.

Donald Trump e Elon Musk não trouxeram isso. Eles e os atuais donos do poder prometem fazer a América “Great Again” para recuperar valores que nós não entendemos, não aceitamos ou, pior ainda, achamos que já estão ultrapassados. Não estão.

O nó do borogodó é justamente esse. Não estão.

Concordo, acredito e tenho total convicção pessoal que são posicionamentos retrógrados, preconceituosos e ultraviolentos, porém, tanto eu quanto você (assim espero) estamos inseridos numa bolha social que, apesar de global, é cada vez menos significante.

Vovó nunca esteve tão certa quando dizia: meu filho, escolhe bem tuas companhias. Sem modéstias à parte, eu passei a filtrar de verdade as minhas companhias desde as nossas eleições de 2018.

Veja bem, a maioria dos países está com Trump. Incrivelmente, mas não surpreendentemente, Rússia e China – os dois maiores arqui-inimigos globais dos EUA – preferem Trump. E não é de agora.

A maior parte da Europa também está com Trump. A diferença é que, ao contrário de Javier Milei, o paspalho argentino, a maioria dos presidentes e primeiros-ministros europeus não se submetem tanto ao ridículo de um abraço ao lado do Pato Donald. Ainda.

Aí você se pergunta: então os donos das firmas de tecnologia, as Big Techs, são todos extremistas e nazistas? Bicho, essa discussão é irrelevante para eles. Na cabeça deles, é uma discussão estéril entre comunistas. Ou para usar um termo bem moderninho e que Elon Musk adora, é uma discussão woke. Expressão, aliás, também bastante particular da América e que a gente tem dificuldade de compreender aqui.

O que a gente entende, em bom português, é que os energúmenos bilionários não são diferentes dos energúmenos proletários. A conta bancária é diferente, mas a imbecilidade é a mesma. Estão ambos à espera desse proselitismo romanceado de uma América que eles não viveram, mas escutam falar desde criança.

É um globalizado distúrbio cognitivo que acomete, por exemplo, tantos portugueses saudosos da ditadura de Salazar, tantos espanhóis com saudades do Generalíssimo Franco e tantos brasileiros querendo reescrever a própria História ao falar que a ditadura militar não foi um golpe e que salvou o Brasil da mão do comunismo.

Eventualmente, esse distúrbio se converte em burrice pura e simples quando começam a balbuciar sobre o “milagre econômico” dos militares. Olha, vou te falar, os americanos têm o falso moralismo deles, mas nós temos o nosso falso senso de justiça e ambos compartilhamos a real essência da ignorância programática.

Veja mais. Nos últimos vinte anos, o sempre tão idolatrado quarteto nórdico do desenvolvimento social – Suécia, Dinamarca, Finlândia e Noruega – tem se ajoelhado cada vez mais aos valores extremistas e trumpistas. Vinte anos atrás, o Leste Europeu caminhava para ser um modelo de reconstrução cultural baseada em valores sociais de igualdade e liberdades coletivas. Tive muita sorte de morar quase dois anos naquela região no auge dessa reconstrução progressista. Hoje, o bloco chamado de CEE (Central and Eastern Europe) está praticamente todo conduzido pela extrema direita.

Até a Holanda, macacos me mordam, até a Holanda (!) tem discutido publicamente o fechamento de fronteiras a imigrantes e a expulsão de refugiados. Aqui na Sudamérica não temos número significativo de refugiados (por que será?), mas será que a gente tem mesmo condição de colocar o dedo na cara dos malditos ianques imperialistas?

É rolo em cima de rolo, viu?

Amplexos e até o próximo boletim.

Rebêlo.


FOTO EM DESTAQUE:
USS Albacore Museum.
Portsmouth, New Hampshire, EUA.
Novembro 2013.


MATE A BURRICE DE FOME

Não uso links afiliados. Todos são sugestões objetivas para entender melhor alguns termos ou expressões. Além dos links no texto, aqui vão sugestões de última hora para você ampliar seu repertório:

  • Para entender um pouco mais os fundamentos do MAGA, leia tudo que encontrar sobre os períodos de Jimmy Carter e Ronald Reagan à frente da presidência dos Estados Unidos. Reagan, aliás, foi o presidente anterior a George Bush.
  • Os livros de Henry Kissinger são brilhantes, apesar de ele ter sido quem foi. Se tiver que escolher apenas um, leia sua obra seminal: Diplomacia (1994). Há uma ou duas reedições no mercado, mas você encontra todas elas com facilidade (e a preço de banana) em qualquer sebo.
  • Realpolitik é um termo alemão e, apesar de Kissinger ter sido o ícone mais famoso do movimento, há vários outros que merecem leitura ou estudo sobre suas carreiras. Considero que os principais são Otto von Bismarck, Hans-Dietrich Genscher, Charles de Gaulle e o mais interessante (na minha opinião): Deng Xiaoping, que conduziu a guinada da China após a morte de Mao Zedong. (no Brasil, a maioria dos livros ainda usa a grafia Mao Tsé-Tung)
  • Para entender parte dos motivos de a China gostar tanto de Trump, as duas últimas temporadas do seriado Mr. Robot (2015-2019) escancaram essa questão de um jeito cirúrgico — se você observar bem as entrelinhas.
  • Para entender um pouco (e ter muito nojo) do recente crescimento do xenofobismo europeu, que no Velho Mundo é a base de quase todos os extremismos, vale a pena pesquisar sobre a campanha anti-imigração que o governo da Suíça lançou em 2006. Os cartazes rapidamente se espalharam pelo resto da Europa e acordaram vários movimentos dormentes na Europa desde então.
  • Não vou deixar sugestões de leitura sobre a ditadura militar no Brasil porque, se você ainda precisa de indicações sobre esse período, você certamente não chegou até aqui 🙂
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